07
ago
De volta ao Brasil colonial
Voltaremos a receber espelhos como pagamento?
por João Sicsú
O Brasil encontrará o seu passado no futuro. O Brasil será o que foi: uma colônia. No século XXI, a colonização assumiu novas formas. Não é mais um país que domina o outro pela força militar.
A Coroa dos dias de hoje são as megacorporações multinacionais, os grandes bancos e o rentismo. Essa nova Coroa é mais forte e maior que os Estados nacionais. Hoje em dia, é o poder econômico organizado que domina países. E o governo do país dominado se entrega completamente. E, por vezes, agradece ajoelhado.
Para fora, o governo esquece sua independência. Uma suposta orientação de soberanianacional desaparece das possibilidades. Para dentro, somente toma decisões para favorecer a nova Coroa em confronto direto com os interesses de suas populações, tal como era no período colonial do passado.
Mais que o governo, o Estado se torna autoritário e violento. Todas as instituições que outrora deveriam constituir uma república democrática se voltam contra os trabalhadores. A Justiça, o governo, o Congresso, as polícias e os grandes meios de comunicação estarão todos a serviço da nova Coroa e contra os trabalhadores. Os cargos de comando nessas instituições são ocupados majoritariamente por integrantes de famílias tradicionais e conservadoras da elite local. E essa elite se desdobra para favorecer a nova Coroa e seus próprios interesses (de poder e patrimoniais).
A elite colonizada se revela sem qualquer discrição: rouba, forma quadrilhas, paga e recebe propina, não atende necessidades básicas da população, saqueia o orçamento público e elimina direitos sociais. O Estado democrático, prestador de serviços e garantidor do bem-estar social desaparece. O Estado volta a ser autoritário, violento e perde a função de ofertar serviços à população, tal como era entre os séculos XVI e IX.
A economia da colônia do século XXI, tal como no passado, volta-se quase que exclusivamente para o exterior. Por decisão da nova Coroa e com a empolgação da elite local, o país se especializa na exportação de produtos básicos. No caso do Brasil, exporta petróleo bruto, madeira, grão de milho, açúcar bruto, carnes bovina e suína, soja e minério de ferro.
Há um novo produto econômico para ser explorado e, portanto, para gerar mais ganhos para os ricos locais e sua nova Coroa: o orçamento público. O orçamento deve ser engordado por meio de um sistema tributário regressivo que poupa a elite e a nova Coroa e sacrifica a população. Assim foi no Brasil do passado e é no Brasil do presente. No século XVIII houve até rebelião contra o pagamento excessivo de impostos. Seu líder foi condenado à forca e esquartejado.
A proposta de administração orçamentária decorrente da emenda constitucional que estabeleceu limite para os gastos primários do governo por 20 anos enxugará todos os serviços públicos (educação, saúde, previdência etc.) e transferirá recursos na forma de pagamento de juros ao rentismo. Os rentistas são principalmente as próprias megacorporações multinacionais e os bancos. No século XVII, uma das motivações da Insurreição Pernambucana que expulsou os holandeses do Brasil foi a cobrança de juros extorsivos. Colonos portugueses eram massacrados pela usura praticada pelos holandeses.
A recente reforma trabalhista e a lei da terceirização barateará o custo da mão de obra: a remuneração laboral será baixa, variável e volátil e os direitos trabalhistas irão desaparecer. Restará o trabalho de baixa qualificação, exaustivo e mal remunerado. Férias somente existirão por conta própria, tal como um desemprego voluntário temporário. Décimo terceiro salário será considerado um privilégio.
O escravo do passado estava preso e era castigado fisicamente quando não produzia. A partir de agora o trabalhador no Brasil viverá uma quase-escravidão. O trabalhador estará livre para se sentir um competidor (um empreendedor de si mesmo), sempre concorrendo com milhões de outros trabalhadores que também se sentem empreendedores de si mesmos. Cada um desejando a sub-posição laboral do outro. Suas armas de concorrência serão mais produtividade (ou seja, mais esforço físico) e menos remuneração (ou seja, menos qualidade de vida). O seu castigo será a sua subutilização, por exemplo, por meio do trabalho intermitente ou o desemprego.
O mercado interno de consumo minguará por falta de capacidade de compra devido aos baixos salários, ao subemprego, ao desemprego e ao desalento. Produtos manufaturados serão quase todos importados. Indústrias tenderão a desaparecer. Quando o Brasil era colônia portuguesa, Dona Maria I, a louca, proibiu a atividade industrial no Brasil para que não faltasse mão-de-obra para a produção de açúcar e para a extração de ouro. Somente era permitida a fabricação de sacos para empacotamento e a confecção de roupas para os escravos. Era permitida a indústria que apoiava a exportação, tal como será no século XXI.
Nos tempos atuais, a mão-de-obra se concentrará na produção de mercadorias básicas exportáveis e na geração de serviços. Grande parte dos serviços não pode ser importada. Contudo, os setores altamente lucrativos de serviços serão comprados pela nova Coroa. O consumo das famílias estará deprimido e o investimento doméstico ficará estagnado. Quando a economia crescer, crescerá para fora (devido às exportações). Atualmente, ainda temos a “plantation” dos tempos passados da colônia: grandes extensões de terra, mão-de-obra quase escravizada e monocultura voltada para o mercado externo.
No período em que a Coroa era Portugal, a concentração de riqueza se dava pela quantidade de terras distribuídas, desde que foram estabelecidas as capitanias hereditárias no século XVI. A terra continua um valioso ativo. Mas hoje a riqueza também se expressa pela quantidade de ativos financeiros que rendem juros aos seus detentores.
Esse é o Brasil que temos pela frente. Melhor se essa história futura pudesse ser abortada. Mas para isso será preciso que os trabalhadores estejam conscientes e mobilizados. E, principalmente, devem entender que somente as disputas eleitorais não serão suficientes. Será necessário promover uma verdadeira e profunda independência da nova Coroa e da elite local.
* João Sicsú é professor do Instituto de Economia da UFRJ, foi diretor de Políticas e Estudos Macroeconômicos do IPEA entre 2007 e 2011.
Comentários